Quick Question: Entrevista a Bruno Mendonça


Não é mentira nenhuma que ao pedir a alguém para citar o nome de alguma revista de videojogos, "BGamer" será sem dúvida um nome que estará sempre presente. Exagero ou não, o certo é que o contacto com este nome foi-nos inevitável nos últimos 18 anos, e mesmo com o fim da revista ter sido anunciado em 2014, a BGamer foi algo que se enraizou de tal forma que ainda não se encontra totalmente removida das mentes (e dos corações) de todos aqueles que se dedicaram religiosamente a cumprir o encontro mensal com as bancas.
Podemos agora desejar que a BGamer seja uma incrível história para contar aos netos.
Foi assim que dois anos depois da temerosa nova do enceramento da revista que nos aventuramos na busca do seu último grão mestre: Bruno Mendonça.

Movido pela curiosidade, Bruno adquiriu a primeiríssimo edição da BGamer que saira às bancas em junho de 1998. Nessa mesma edição, um passatempo a valer um PC desafiava os leitores a enviar uma análise de um jogo à preferência. Infelizmente, de 2000 participantes, Bruno ficou em segundo: "Não ganhei o PC, mas fui convidado a trabalhar como colaborador externo, ou seja, levantava os jogos na redação, e depois realizava o trabalho em casa (jogava durante vários dias seguidos e depois elaborava o artigo que enviava por email). Isto permitia fazer a minha faculdade sem problemas (formação em Economia).", conta-nos Bruno.

Foi a partir da 3ª edição da revista que as suas análises começaram a ser presença regular, mas só em 2004 é que Bruno entraria na redação permanentemente. De jornalista júnior a coordenador de redação, só em 2011 é que assumiu o trono de ferro.


Miguel Fernandes: Num Portugal relativamente atrasado, a BGamer foi a única revista do género que sobreviveu ao decorrer dos tempos. A revista sempre teve sucesso nas vendas, ou existiram sacrifícios a fazer? Esta questão dirige-se especialmente aos primeiros anos da revista.

Bruno Mendonça: Ao longo dos seus 16 anos de existência, a BGamer foi sempre uma referência no panorama dos videojogos em Portugal. Mas isto não surgiu de um dia para o outro. Desde a sua génese que a BGamer apostou em desempenhar o seu trabalho de modo sério, rigoroso e competente. A nossa missão passava por tratar os videojogos com o respeito que eles merecem, de forma profissional, como acontece aliás nas restantes dimensões e focos do jornalismo especializado (desporto, cinema, música, economia, internacional, etc.). Esta linha orientadora, em conjugação com a paixão da equipa pelos videojogos e pelo entretenimento digital, foram premissas fundamentais para o sucesso da revista junto dos leitores, mas também no relacionamento impecável com as várias editoras nacionais e internacionais. Não sei se compreendo o queres dizeres com "sacrifícios", mas os jornalistas da BGamer nunca escreveram para alimentar o seu umbigo. Escrevíamos para os nossos leitores – de jogadores, para jogadores – e o seu feedback permanente foi importantíssimo para a evolução que a revista sofreu ao longo dos anos. A BGamer não era uma instituição de solidariedade social e nesse sentido visava a obtenção de lucro. Se por um lado tínhamos obrigação de responder a um nicho de mercado, onde se incluía um público altamente conhecedor da indústria e determinados fenómenos restritos dentro do meio, por outro teria sido um suicídio ignorar a corrente mainstream. Não era fácil agradar a gregos e troianos, mas esta foi a justificação para a BGamer ter apostado na diversidade dos seus conteúdos. Por exemplo, um determinado leitor podia não gostar do tema de capa de um determinado mês, mas sabia que no interior da revista ia encontrar vários jogos e/ou assuntos do seu interesse. Jogos para PC e para consolas, jogos triple-A e jogos indie, retrogaming, secção de hardware, entrevistas, reportagens, artigos de investigação, mobile, merchandising associado aos videojogos, online e por aí adiante. Será que isto era "sacrificar" alguns conteúdos em funções de outros? Talvez. Acima de tudo tentávamos oferecer o melhor conteúdo possível em função das particularidades do nosso público-alvo.

Capa da BimotorGamer nº1. junho de 1998
MF: Na tua sincera opinião, achas que a BGamer teve um papel maioritário na incrementação da cultura "gamer" hoje existente no nosso país?

BM: Não quero parecer presunçoso, mas quero acreditar que a BGamer teve a sua contribuição para o crescimento e amadurecimento da indústria em Portugal. Como referi na resposta anterior, o nosso objetivo sempre foi tratar os videojogos com o respeito merecido. Quando comecei a trabalhar na BGamer, em 1998, irritava-me ouvir respostas do género "Videojogos? Isso é uma coisa para miúdos." E isto era o sentimento generalizado na sociedade portuguesa naquele tempo. Os videojogos não eram respeitados, aliás eram até vistos com alguma desconfiança. Agora imagina como era visto o "jornalismo" sobre videojogos. O discurso vigente era baseado no preconceito e na ignorância, algo que depois voltou em força com a questão da violência, por exemplo. Felizmente que muita coisa mudou nestes últimos anos. Os putos que nas décadas de 80 e 90 cresceram com os videojogos são hoje adultos que pensam de forma totalmente diferente. Costumo dizer: os geeks ganharam e tomaram conta do mundo.

MF: No seu começo em 1998, a BGamer conseguiu testemunhar aquela que seria a última tentativa da SEGA de se afirmar no mercado das consolas com a Dreamcast. Sabendo o que sabemos hoje, achas que se se tivesse esforçado um pouco mais na exportação da consola para o mercado ocidental, poderíamos ter tido a oportunidade de conhecer, pelo menos, a Dreamcast 2?

BM: Eu compreendo a tua questão, todavia não concordo com essa ideia que sugere a falta de empenho da Sega na "exportação da consola para o mercado ocidental" e que isso podia de alguma forma ter evitado o fracasso da Dreamcast. Na minha opinião não existe uma razão isolada que tenha sido decisiva para esse desfecho, mas sim a conjugação de vários fatores. Em primeiro lugar temos de recuar no tempo e perceber que, antes do lançamento da Dreamcast, a Sega tinha dado vários tiros no pé. Se é verdade que a Mega Drive foi um êxito, sobretudo nos EUA, tudo o que veio depois acabou por afundar a companhia e aumentar o sentimento de desconfiança por parte dos jogadores. Por razões distintas que não vale a pena detalhar, quer o Mega CD, quer a Sega 32X nunca conseguiram convencer ninguém. A estocada final foi o lançamento desastroso da Sega Saturn. Face a tudo isto os jogadores deixaram de confiar nas consolas da Sega e isso teve consequências quando a companhia realizou a derradeira tentativa para se afirmar no mercado de consolas com o lançamento da Dreamcast. A juntar a isto temos a concorrência, sobretudo da Sony. Não nos podemos esquecer que a Dreamcast é lançada numa altura em que a PlayStation original era já a consola doméstica de maior sucesso no mundo inteiro. E, quem tinha uma PlayStation sonhava todas as noites com a... PlayStation 2. As promessas da Sega para a sua consola caíram em saco roto junto dos jogadores face à desconfiança na marca, e não foi por acaso que a Sony revelou as características da PlayStation 2 poucos meses antes do lançamento da Dreamcast. Se isto não bastasse, a Sega teve ainda de enfrentar um problema grave relacionado com os custos de fabrico da própria consola. Face a todos os elementos inovadores da consola, nomeadamente o online, o custo de produção de cada consola era elevadíssimo, no entanto a Sega não podia refletir esse custo no preço final da consola (por motivos óbvios, o preço da Dreamcast tinha que ser semelhante ao da futura PS2). A Sony não tinha esse problema pois a sua consola era baseada em tecnologia produzida internamente, nomeadamente o DVD. A decisão da Sega passou por vender a consola com prejuízo, tentando depois recuperar essas perdas através da venda de jogos. Existem outros motivos, incluindo aquele que referes na tua questão, mas na minha opinião estas foram as principais razões que ditaram a morte da consola pouco tempo depois do seu lançamento. Para mim a Dreamcast foi uma consola revolucionária. O Visual Memory Unit, um sistema de rato e teclado, outros acessórios fantásticos como o Arcade Stick e a cana de pesca, a Light Gun, o tapete para os jogos de dança, a câmara Dreameye. Depois temos a supracitada questão do online, uma opção altamente inovadora naquele tempo, mas que se calhar veio demasiado cedo pois naquela altura os custos e a acessibilidade da internet eram bem diferentes daquilo que temos atualmente.

Presença da BGamer na E3 2013
MF: Os anos passam e os tempos evoluem. A distribuição de jogos está aos poucos a despedir-se do formato físico e a abraçar lojas digitais como a Steam ou a Origin. Desta forma há quem defenda que instalar um jogo tem vindo a tornar-se num processo muito mais burocrático. Em que posição te colocas, nos conservadores ou estás à vontade com isso?

BM: Na minha opinião o formato digital veio para ficar e será o formato dominante no futuro. Isto não significa a morte imediata do tradicional formato físico. Enquanto existir procura, as caixas vão continuar nas prateleiras, sobretudo para quem gosta do colecionismo associado a edições especiais. Não vejo o formato digital como um processo mais burocrático, antes pelo contrário. Se for de férias ou em viagem para o estrangeiro levo comigo o portátil e todos os jogos que tenho na conta Steam. Aliás, o serviço da Valve foi um grande impulsionador do mercado de jogos para PC e demonstrou claramente que esta plataforma não estava condenada pela pirataria como era referido por alguns profetas da desgraça. Aconteceu o mesmo com a música (iTunes, Spotify, etc.), com o cinema (Netflix e os videoclubes digitais das operadoras de televisão) e por aí adiante. Se por burocracia referes a necessidade de criar uma conta, fazer o download, estar ligado à internet, etc., compreendo, mas isso não é exclusivo dos videojogos, muito pelo contrário. É o preço a pagar, mas entre o deve e o haver, penso que a revolução digital tem facilitado a vida de todos, quer dos consumidores, quer dos criadores de conteúdos, sobretudo dos pequenos produtores independentes que atualmente conseguem mostrar o seu trabalho, muito por culpa das plataformas digitais.

MF: A experiência multiplayer foi das maiores revoluções nos videojogos. Achas que mesmo assim, as produtoras devem continuar a insistir na experiência campanha solo, ou que estamos num mercado que pretende separar as águas dedicando todos os esforços num determinado modo de jogo?

BM: Depende do jogo. Existem experiências 100% multiplayer para as quais não faz qualquer sentido acrescentar um modo a solo… e vice-versa. Se por um lado existem jogos aos quais foi acrescentada uma vertente multijogador que era totalmente dispensável, o inverso também acontece. Depois existem cada vez mais casos onde o jogo a solo e a experiência multijogador estão completamente misturadas, sem a tradicional divisão de opções no menu principal. Acho que o mercado é diversificado o suficiente para receber todas as propostas. Existe público para todo o género de experiências. O que não pode acontecer é as editoras cobrarem DLC que trazem coisas fundamentais para a experiência de jogo e que deviam fazer parte do jogo original.

MF: Concordas que remakes e remasterizações de clássicos são tentativas desesperadas de acumulação de lucros?

BM: A questão dos três "R's": remakes, remasters e reboots. Em primeiro lugar é preciso perceber a diferença entre os três conceitos. Começando pelo remasters. Na verdade não sou grande fã de remasterizações. Acho que não acrescentam nada e na grande maioria dos casos são realmente uma tentativa desesperada da editora em rentabilizar um determinado IP, ou seja, aquilo que normalmente chamamos de cash grab. Se já joguei esse título no passado não o vou fazer novamente apenas porque está mais bonito. Se nunca o joguei e pretendo fazê-lo, prefiro viver a experiência desses jogos tal como eles foram lançados na sua altura. De qualquer forma, um remaster pode fazer sentido para quem pretende jogar um determinado título cuja versão original não foi lançada na sua plataforma de eleição. Pode ser contraditório, mas em relação aos remakes já não sou tão drástico, isto partindo do princípio que o remake vai trazer algo realmente novo e não apenas uma simples atualização visual. Em relação aos reboots não existe qualquer problema. Na prática, um reboot é um jogo totalmente novo que vai beber inspiração a um universo existente. O Tomb Raider é um bom exemplo de um reboot que na minha opinião merece elogios pela forma como foi apresentado. Não nos podemos esquecer de uma coisa: é o mercado que dita as leis. Se as vendas de remasterizações forem boas, é natural que as editoras apostem nestas versões recicladas, sobretudo porque os custos de produção associados a uma versão remasterizada são bastante mais reduzidos por comparação a um remake ou a um reboot.
Tomb Raider, o reboot que em 2013 foi altamente aclamado pela crítica, tendo sido nomeado para inúmeros prémios,
MF: Das tuas duas paixões, jogos e futebol, qual a que te dá mais gozo?

BM: Pergunta complicada. Eu adoro ver futebol, sobretudo futebol internacional. Sou aquele tipo que tem pachorra para ver qualquer jogo, incluindo camadas jovens ou entre equipas de divisões inferiores. Além disso tenho bilhete anual no estádio do meu clube do coração e tento não perder nenhum jogo em casa. Embora seja o meu desporto favorito, isto não acontece apenas com o futebol. Com exceção para uma ou outra modalidade, como golfe ou hipismo, se tiver a dar desporto na televisão, o mais provável é que mereça a minha atenção (para desespero da minha mulher). Mas tenho muitos outros interesses como banda-desenhada, ciência e ficção científica, tecnologia, vida selvagem. Gosto bastante de ler, ver filmes, séries de televisão e, por mais estranho que possa parecer, sou um apaixonado por fenómenos naturais extremos, sobretudo tornados (ao ponto de ficar acordado durante a madrugada para seguir em direto – via stream - alguns caçadores de tempestades norte-americanos). Os videojogos são claramente uma das minhas grandes paixões. Comecei no Spectrum 48K. Lembro-me de comprar revistas com código Basic e de passar tardes inteiras a copiar linhas de código. Tive várias consolas, acompanhei o crescimento da indústria e apaixonei-me por este universo, algo que depois contribuiu decisivamente para a minha entrada na BGamer e para a minha carreira profissional enquanto jornalista / editor.

MF: Qual o teu jogo favorito de todos os tempos?

BM: É impossível dizer-te qual é o meu jogo favorito de sempre. O melhor que eu consigo fazer é dar-te uma pequena lista de jogos que realmente me marcaram enquanto jogador. E é uma lista pessoal, e não uma lista “profissional” que apresentaria caso tivesse de escrever um artigo sobre os melhores jogos de todos os tempos. Assim sendo, tenho de começar pelo World of Warcraft. Foi o jogo que me abriu as portas para o universo dos MMORPG. Fui jogador hardcore, com treinos, raids e até fui officer de uma guild. Infelizmente as últimas expansões e o facto de o jogo consumir imenso tempo afastaram-me de Azeroth, mas irei recordar para sempre o World of Warcraft (e as duas primeiras expansões). Outra experiência que nunca vou esquecer: Red Dead Redemption. É verdade que não reinventou a roda no que aos jogos em mundo aberto diz respeito, mas a Rockstar criou uma experiência avassaladora a todos os níveis, mesmo para quem não gosta da temática western. Não posso também deixar de referir Journey, Portal, Half-Life 2, Mass Effect 2, GTA: San Andreas, GTA: Vice City. Depois existem outros mais antigos que também não posso deixar de fora: Diablo II, Mortal Kombat, Mortal Kombat II, Sensible Soccer, Doom, Tony Hawk's Pro Skater 2, Excitebike, Super Mario Bros., Super Mario Bros. 2, Super Mario Bros. 3, Command & Conquer, Street Fighter II, Battletoads, Double Dragon, River City Ransom, F1 GP, Mega Man 2, Championship Manager 2, enfim... Tantos jogos, tantas memórias!

MF: Alguma mensagem para os nossos "nerdezinhos"?

BM: Obrigado pela paciência para lerem esta entrevista. E que me desculpem a muralha de texto. Bons jogos e divirtam-se.



Copyright © Ximbalau Nation - Uma explosão de partículas geek. Todas as imagens de videojogos, filmes, séries e etc. são marcas registadas dos seus respetivos proprietários. | Política de Privacidade | Termos de utilização Licença Creative Commons